segunda-feira

A história da Jardineira e do Seu Mundo


E tranqüilo e calmo passavam os dias dos anos 40 e 50. Eu me vi menino, com meus 8 anos,num cantinho do salão de barbeiro do Papai , sentado no meu sagrado banquinho, engraxando e lustrando as botinas enquanto Papai ensaboava o rosto do freguês, e num vai e vem num passador de pita deixava a navalha mais afiada.E a memória ia armazenando casos e histórias dos fregueses.


Era só chegar Seu Mundo, (Raimundo) no salão e os casos aconteciam ...
Seu Mundo, negro alto, sempre com um terno já encardido pelo tempo, parecendo branco, chapéu de feltro, aba pequena, colarinho da camisa abotoado, tampando um pequeno papo. Dizia que era porque quando criança bebia muita água de chuva das bicas das casas que eram de telhas de barro muito velhas.
Nesta época, quem vinha de manhã para a cidade e fosse retornar para a roça à tarde, se não optasse por fazer a viagem nos caminhões leiteiros, tinha que tomar como condução as velhas jardineiras Chevrolet, com seu bagageiro (maleiro) que ficava em cima, nas costas. Subia–se atrás por uma escada de ferro, e protegidos por uma grade de canos entrelaçados, ficavam a bagagem e alguns passageiros quando dentro dela já estava lotado.
Na pequena rodoviária na praça do rosário, com seus famosos banheiros ( perfumados ) , uma jardineira se destacava pela sua cor : verde e amarelo. Seu chofer era Zé Kaolho, o dono Jorge Agelune fazia o trabalho de cobrador e ajudante.
Às 14 horas, num pequeno cômodo (estúdio), D.G. liga o auto-falante, coloca a cabeça para fora, vê nuvens escuras e avisa que poderá chover a qualquer hora. Toca uma campainha e deseja booooooooooa viagem !
Descendo pela Neca Medeiros, a jardineira entrava pela praça Blandina de Andrade. Ali, uma grande ponte de madeira separava a praça da Rua da Praia, que tinha à esquerda o velho casarão dos Santiago com sua venda. À direita, o bonito sobrado do Neca Lúcio, com a data na fachada: 1918.


Um pouco acima, nós, meninos, a cada moeda que ganhávamos, o destino era bater na grande porta da casa da Júlia Passo-Preto e comprar as gostosas geléias pretas que só ela sabia fazer. Só de lembrar confesso que senti na pontinha da língua um gosto gostoso de saudade!
E o grande pontilhão? Quantas lembranças nos traz da Maria–fumaça!
O guarda, com seu imponente boné e sua farda, parecendo general, após três apitos, começava lentamente a locomover. A cada travessia, uma placa “apite“. Aí toda a cidade ouvia seu apito rouco e solitário. Quando entrava a noite, ia soltando fagulhas, parecendo estrelas caindo no chão.
Só quem ouviu este apito e dele se lembra, pode sentir a saudade de um tempo deste trenzinho, vagaroso, com paradas vagarosas em cada estação. E a viagem seguia, embalada pelo sacolejo do trem.
Um dos casos que ouvi de Seu Mundo fazia todos rirem no salão...


A jardineira sempre fazia as viagens com sua lotação esgotada (sentados 36 e de pé 30). A maioria dos passageiros eram os colonos das fazendas. Quando lotada, muitos iam no maleiro. Subiam pela escada e se acomodavam, sentando nos engradados que protegiam a lataria, e segurando nas grades das laterais para se protegerem. Na jardineira se levava de tudo. Galinhas e frangos presos em um pau, patos, leitões para engorda dentro de saco, embornais e sacos de mantimentos, tudo acomodado entre as pernas. As vezes se levava até caixão, que ficava em alguma venda esperando por um defunto daquela região.
As jardineiras tinham sempre o capô tampando o motor que roncava e fazia que se ouvisse o ranger da lataria. De vez em quando, tinha se que desligar o motor pois o radiador fervia. Dentro do carro o calor era insuportável. Os vidros das janelas sempre ficavam fechados para evitar que a poeira entrasse. Preferia-se o calor a poeira.


Num certo dia feio, nublado com nuvens escuras, pronto para chover, seu Mundo (Raimundo) esperava pela jardineira para retornar à roça. Chega então ela, cheia, lotada, com todos os passageiros com medo da chuva. Seu Mundo sobe a escada e se acomoda sozinho em cima, no bagageiro, e vê no meio daquelas malas um caixão. Estava vazio, com certeza ia para alguma venda, esperar algum defunto. Vem a chuva. Para se proteger da água fria e com medo dos raios, seu Mundo abre a tampa e deita dentro do caixão, fechando-o.E pega no sono...
No decorrer do trajeto, com a estiada da chuva, vários passageiros que esperavam a jardineira pela estrada, como não cabiam naquele aperto de dentro, sobem a escada e se ajeitam nas laterais do maleiro. Ouvia-se apenas o barulho das galinhas, patos e leitões que levados para cima se acomodavam entre as pernas dos passageiros. Havia um grande silêncio em respeito ao caixão com um suposto defunto ali dentro.


A chuva pára. Pouco depois seu Mundo levanta a tampa do caixão e pergunta: “Uai, parô de chuvê?” Aí foi um Deus nos acuda. Gente pulando de cima e gritando. Os mais velhos descendo pela escada, um por cima do outro. Patos voando, malotes, sacos e embornais, galinhas, leitões, tudo caindo, e o povo correndo para o mato e pela estrada. E os passageiros de dentro da jardineira com o chofer, vendo aquilo, não sabiam o que tinha acontecido.
Parou a jardineira. Seu Mundo desceu com toda calma, explicou o ocorrido. Gritaram chamando o pessoal escondido pelo mato afora. Esclareceu-se que ali não tinha defunto nenhum, apenas seu Mundo escondendo da chuva. Reuniu todo o pessoal que seguiram viagem, mas as galinhas, patos e leitões ficaram perdidos pelo mato.
SWB - 2003

Um comentário:

Eunice disse...

Gostei do teu texto, é exatamente o que estou estudando e fazendo uma tese de mestrado, memórias da infância, gostaria de saber se tens interesse em publica-lo num livro independente que estou lançando como anexo de meu trabalho. Não terá custos para ti e uma oportunidade de divulgar tuas memórias como estudo. Outro detalhe minha pagina é www.paginaanterior.blogspot.com. dá uma passada e fique sabendo detalhes.